“I’ve searched my soul, for you, today.
But this feeling is getting old, and it won’t go away.
I’m lost without you here
My love
It lays
Under the cornerstone,
That the builder threw away.
And I’ve searched my soul, but nothing ever came out,
And this feeling is getting old – right back into the cold, now.”
(Vanity – Highly Suspect)
Nesse lento fim de tarde, o silêncio que banhava o quarto, junto às pequenas poças de luz que passavam por entre as cortinas da janela, umedecia minha boca com um gosto amargo.
“Vaidade.”, resumiam-se as palavras desse silêncio inquietante.
Olhei pelo vidro opaco e empoeirado da janela, observei a rua em seus detalhes que, no ritmo normal, agitado da vida, me eram sempre tão desimportantes: o poste de cimento envergado pelo tempo, as pastilhas azuis que cobriam a fachada do condomínio defronte ao meu, as roupas do vizinho dependuradas no varal lá de cima, lá na cobertura. Neste dia, essas pequenas imagens de uma tarde qualquer me serviam como um bálsamo relaxante, como um tipo de calmante forte, cavalar, que só se toma quando parece que o coração está pra cair pela boca, ou também como uma daquelas pastas d’água que se aplica sobre a queimadura para suavizar a dor quente: eu olhava pela janela, eu observava essas cenas sossegadas, e, respirando devagar, inspirando e expirando lentamente, procurava entre elas um pouco de paz que pudesse sugar para dentro de mim.
Entretanto, mesmo assim, impassível diante de todos os meus protestos por tranquilidade, eu ainda ouvia junto da minha orelha aquele mesmo silêncio, sussurrando, maldoso:
– É a vaidade… – e eu sem querer repetia mudo, com a minha própria boca, as mesmas palavras do silêncio. Movendo os lábios devagarzinho, fingindo suas sílabas com cuidado para não as permitir escapar de fato – por pouco eu não deixava essas palavras fugirem à superfície do dia.
– É a vaidade. – o silêncio repetiu ao pé do meu ouvido, com cada fonema babado por sua saliva invisível. Esse silêncio estranho, personificado, agia como alguém que solta uma isca saborosa para o peixe pegar, mas que fica ele mesmo com vontade de poder mordê-la: – Mas será que é a dela, ou é a vaidade sua? – e, perguntando isto, o silêncio parou um instante, esperando por mim, esperando para ver se iria ceder aos seus sussurros mal-intencionados e se enfim repetiria suas palavras tronchas com a minha própria voz. O silêncio queria ser som, pensei, mas eu não queria pronunciá-lo…
Lentamente, ainda enquanto respirava devagar e pausado, tirei o olhar da janela. Vagarosamente fechei os olhos, e, tentando escapar das espertezas do silêncio contra mim, encarei para dentro: entreabri meu peito e olhei firme para dentro de mim… Apesar de não querer encará-lo de frente, mesmo assim eu queria descobrir: afinal, de quem era a vaidade de que o silêncio falava?
– Não. – ainda mudo, falando só entre meus pensamentos, recusei ao silêncio: – Não preciso responder sobre isto a você… Quem tem de saber sou eu, não você, nem muito menos ela…
E então, como se subitamente a noite caísse sobre o dia e a tarde fosse parar por debaixo do parapeito da minha janela com um único soco, um nocaute, tudo ao meu redor ficou escuro: ouvi o som repentino das cortinas do quarto se fechando ao meu redor, me enclausurando, e num instante eu estava na mais profunda escuridão. Ali nem mesmo o silêncio podia me alcançar…
E, ali, não existia nada a não ser…
A não ser...
Uma pedra…
Uma pedra…?
Sim, uma estranha e disforme e terrivelmente enorme pedra.
Assustado com o que encontrava, olhei duas, três vezes para aquele buraco no meu peito onde deveria estar meu coração, mas ali não havia outra coisa – a não ser essa pedra…
Engoli a seco: no fundo de mim, no fundo dos meus olhos fechados, apertados, com meus pensamentos trancados num porão distante do meu cérebro, eu via repentinamente essa grande, grande pedra – uma pedra tão grotescamente grande que, por alguns instantes, fiquei imaginando como é que ela caberia no meu peito… Era redonda e maciça, mas também era ligeiramente áspera e grosseira, um monólito cinzento tal qual as grandes cabeças da Ilha de Páscoa; era algo, pensei, que deveria estar ali desde os primórdios de mim. Era ela a minha pedra de fundação.
Dentro do escuro de um quarto que nem sequer mais existia, caminhei até ela, a pedra. Afaguei minha mão contra sua superfície até sentir minha pele doer na sua aspereza. Era uma rocha dura, sólida, que provavelmente pesava sozinha mais de uma ou duas toneladas, mas, pressionando minha mão contra sua superfície, de repente tive uma sensação estranha: era como se pudesse sentir ali, ao toque da minha pele, o som de batidas suaves e compassadas… A pedra estava viva, e seu coração, perdido no meio dos minérios, batia lentamente, lutando para não parar.
Era incômodo e assustador: que, mesmo que as batidas do coração da pedra viessem até mim muito, muito fracas, eu sentia como se pudesse segurá-lo bem ali, entre as minhas duas mãos. Enojado com essa sensação estranha, quase indescritível, me afastei dando um passo para trás.
Então, repentinamente, ouvi um som grave, lento, como o gemido de um animal pesado e abatido… “É a pedra”, imediatamente pensei, “É a pedra falando”.
– A do mundo… – a mesma voz gorda e oca que soltara o gemido deixou então ressoar lentamente algumas curtas palavras: – É a do mundo todo… – ela disse.
Surpreso, pisquei os olhos várias vezes. A pedra estava dentro do meu peito, a pedra estava viva, e a pedra falava. Ou, mais surpreendente que isso: a pedra sentia e pensava. E, através de suas palavras melancólicas, lesadas, essa pedra que morava em mim deixava escorrer seus sentimentos duros de uma maneira suave e aquosa. Agucei os ouvidos para escutar o que ela tinha a me dizer…
– É a do mundo… É a vaidade de todo o mundo… E aqui você está… Aqui. Aqui. – boquiaberto, percebi que a pedra respondia ao que antes o silêncio me dizia. Ele, o silêncio, e ela, a pedra, tinham algo a me contar sobre a mesma coisa: de quem era aquela vaidade que cortava longos sulcos entre mim e ela? De quem era esse orgulho podre, de cheiro de peixe, que lentamente me partia em dois?
– É a vaidade de todo o mundo… É a vaidade dela. E aqui você está… Aqui. Aqui… – a pedra disse.
– É a vaidade de todo o mundo… É a vaidade sua. E aqui você está… Aqui. Aqui… – ela repetiu.
– É a vaidade de todo o mundo… É a vaidade dela. É a vaidade sua. Então você finalmente veio aqui… Você finalmente veio aqui. Você veio… Aqui. Aqui. Aqui… – e, sem parar, ela continuou.
Por um minuto inteiro, a pedra se pôs a repetir, repetir e repetir, obedecendo a um ritmo que parecia compassado com as batidas do seu coração meio vivo, meio morto. E a cada “aqui” que ela soltava, sua voz se tornava mais forte e pesada, ao ponto de fazer todo o espaço ao meu redor sacudir. Com esforço, preguei meus pés no chão, tentando não balançar a cada palavra que a pedra entoava.
Aqui.
Aqui.
Aqui…
A pedra falava bem menos que o silêncio, mas era repetitiva, e dura, como era de se esperar: sem parar, ela continuava a dizer o mesmo “aqui” várias e várias vezes… Mas do que é que ela falava e a que exatamente ela queria chegar? O que essa pedra queria dizer com sua resposta tão enigmática? Cocei a cabeça, tentando entender: era difícil ouvi-la, me segurar no mesmo lugar e ainda captar o que dizia com essas palavras. Fechei os olhos, tentando me concentrar por um instante sequer, mas ali não havia silêncio, e ainda ouvia os grunhidos pedregosos daquela criatura batendo contra meus ouvidos. Apertei ainda mais os olhos, forcei os miolos a pensar, porém, pouco antes que pudesse chegar a alguma solução, alguma resposta, a pedra entreabriu sua grande boca interna e gritou:
– AQUI! – de repente ela soltou de uma vez, com toda a potência do seu corpo rochoso.
Seu grito foi tão alto que caí no chão, as paredes estremeceram, e o teto se partiu em pedaços. De um segundo para o outro, aquele pequeno espaço do meu peito colapsou, com a pedra sendo desaparecendo junto dele. Assustado, abri os olhos. Meu pulso estava disparado, minha pele estava úmida de suor e minha respiração estava completamente desorganizada. Quando olhei ao redor, percebi que não estava mais no escuro de dentro de mim: eu continuava no meu quarto, sob o frio do outono e sob a luz distante do final do dia. Não via mais a pedra monolítica que encontrara no peito, apenas via a cadeira, o armário, a cama – móveis comuns que mobiliavam aquele cômodo.
Agora, entretanto, havia algo de bem diferente de antes. Enfim, o silêncio estava mudo… Aliviado, suspirei: o silêncio voltara a ser apenas silêncio, ele nem sequer ousava tentar falar. A pedra respondera a tudo sem pudores, acusando os culpados com uma honestidade indubitável: a culpa era de todos. Eu, ela, todos – a vaidade era de todos. A mesma resposta de sempre, talvez, mas uma resposta clara.
Ergui os olhos novamente para a janela: nada tinha mudado, o poste permanecia torto, as pastilhas ainda eram azuis, e as roupas do vizinho continuavam a balançar sob o vento. Era tudo igual, mas havia uma coisinha a mais ali: agora, por um motivo estranho e pesado, eu sabia que existia em algum lugar daquele quarto, em algum lugar dentro de mim mesmo, um ser enorme, bruto e vivo… Um ser tão grande que era capaz de esmagar meus pensamentos, capaz de rasgar a minha vaidade de saber…
Eu não sabia nada, o silêncio não sabia nada, e nem ela sabia nada…
Os sulcos que se agravavam entre nós dois, eles também não sabiam de nada…
Mas, dali para frente, com ou sem esse não-saber, o que aconteceria…?
– Por algum motivo você veio até… Aqui… – ouvi um cochicho.
Fechei os olhos, respirei fundo e me levantei de onde até então estava sentado. Caminhando devagar, deixei o quarto para trás e, com ele, o fim de mais um longo dia.