Sonhos fundos

And now people talk to me, but nothing ever hits home.
People talk to me, and all the voices just burn holes.
.
I dream all year, but they’re not the sweet kind.

And the shivers move down my shoulder, blades in double time.
And now people talk to me – I’m slipping out of reach now.
People talk to me – and all their faces blur.
.
I’m done with it. 

This is the start, of how it all ends.
(Yellow Flicker Beat – Lorde)


Conforme caminhava cuidadosamente sobre as rochas, tentando não pisar nas pedras soltas e não cair nas poças d’água, sentia entre os dedos dos pés o limo grosso que forrava os metros e metros de caminho à frente. Eu andava atenta, desconfiando desse limo que, mesmo sendo suave e macio, era também muito escorregadio e viscoso, a cada passo me ameaçando com um tropeço e um mergulho direto nas ondas da baía. Aqui e ali, eu lançava um olhar furtivo para o mar, e a cor profunda de sua água me deixava ainda mais receosa. Sentia como se ali, debaixo dessas ondas azuis-escuras, morassem dúzias e dúzias de criaturas marinhas que só esperavam por passantes desastrados como eu, bobos prestes a cair em seus estômagos famintos. Arrepios escalavam minha espinha enquanto eu caminhava vagarosamente sobre as rochas, imaginando os bichos do fundo do mar, pensando em olhos arregalados e em bocas gigantes, pensando no escuro sinistro da baía…

   – Mas por quê? Mas por onde? Mas para quê?

   Levantei o olhar, que até aquele ponto eu fechara somente sobre as rochas, pedras e poças, e ali, bem diante de mim, encontrei a sua figura me encarando. Seus olhos meio puxados rasgavam a distância entre nós: sua expressão chegava até mim com um quê de aborrecimento, e seu olhar pontiagudo afiava a sensação de perigo que me admoestava desde que tínhamos posto os pés na beira da praia… Era que você já não aguentava esperar pelos meus passos lentos e queria mais que nunca me apressar a ir até onde estava. Dali, você me acenava insistentemente com uma das mãos, me indicando um caminho por onde podia o acompanhar. Sua boca se movia obstinadamente, me gritando alguma coisa, seus lábios abriam e fechavam, emoldurando frases que não podia ouvir sob o marulho da baía…

   – Por isso, por aqui. Vem por isso. Bem por aqui.

   À minha frente, um longo corredor formado por aquelas rochas cheias de limo seguia até a outra ponta da baía. Cinco navios-cargueiros titânicos boiavam debilmente do lado de lá, perto do horizonte, todos eles parecendo prontos para afundar pelo peso absurdo de suas carcaças. Agora que a maré estava baixa podíamos ver que as rochas quase chegavam até os navios, mas ainda assim era um engano bastante óbvio pensar que ali a profundidade da baía era pouca: esse caminho de pedras nos convidava a peregrinar até lá e esses navios nos chamavam para perto deles, mas, se a maré subisse, rapidamente seríamos engolidos pelo mar sem que tivéssemos a menor chance de correr até a praia… Era um convite e um chamado hipnotizantes, mas indiscretos.

   E, enquanto eu observava esse cenário assustador, você também me chamava – sabe deus por que, sabe lá para quê… Eu só imaginava que era tudo uma enorme burrice – tudo, absolutamente tudo aquilo… Fechei os olhos, mordi os lábios e suspirei:

   – Não, eu não vou…

   Meus pés frearam, minhas pernas estacaram, e meu rosto se contorceu numa careta: no mesmo momento em que pensei em parar e voltar, as ondas ao redor de onde estava cresceram, urgindo em abocanhar meus pés. Mas por que logo agora…? 

   – Sim, você vai sim…

   Eu olhei para frente e para trás, mas rapidamente percebi que não teria tempo para voltar até a praia. Só me restava a chance de correr até onde você estava e de rezar para que ali, onde as pedras eram mais altas, as ondas não conseguissem nos alcançar.

   – Eu não vou – não tenho mais como.

   – Você vai sim – só tem essa escolha.

    Juntei todas as forças que tinha no corpo e corri tanto quanto pude. Eu tropeçava nos meus próprios pés, embolando as pernas, embolando os braços… Meu coração disparava fora de compasso, minhas vísceras se embrulhavam de medo, e as ondas aceleravam mais e mais, correndo atrás de mim, espumando e borbulhando bem detrás dos meus tornozelos…

   Fechei os olhos. Senti as bochechas esquentarem. Corri e corri e corri.

   Ouvia os rangidos lentos dos navios enquanto o mar os erguia milímetro por milímetro: os navios iriam se erguer sobre nós, virar de ponta-cabeça, nos esmagar. Sentia os leves balanços das pedras conforme as ondas as moviam centímetro por centímetro: as pedras iriam se mover sob nós, girar debaixo dos pés, nos engolir. Não tinha mais jeito, pelo menos não para mim… Sim, não tinha mais jeito: eu ia ficar para trás.

   – Para de pensar e corre!

   Eu estaquei no mesmo lugar.

   Você já estava longe – você sempre correu muito mais rápido que eu…

   Você gritava para mim – você sempre pensou muito mais claro que eu…

   E eu estava ali estacionada – eu já tinha desistido, eu estava parada desde o começo.

   – Cala a boca e cai fora daqui!

*

A maré subia rapidamente naquela baía. E, quando todas as criaturas já estavam deitadas no mar, quando o longo corredor de rochas já estava mergulhado sob as ondas outra vez, quando os navios já estavam nadando nas águas… Todo o lugar era só um longo silêncio.

   E então, quando eu já estava naufragada, o sonho acabava, e eu acordava.

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