Fantasma de capa de chuva?

“Te vejo sonhando – e isso dá medo –
Perdido num mundo que não dá pra entrar.
*
Cê acha que eu sou louca,
Mas tudo vai se encaixar.”
(
Na Sua Estante – Pitty)


Sonolenta, deitada ao seu lado sobre a cama, lembro que perguntei a ele quase que espontaneamente: – Você já ouviu a história do fantasma de capa de chuva? – sentia uma metade de mim acordada e a outra metade mergulhada entre sonhos confusos.

   – História do quê…? – ele perguntou de volta, também cansado e distraído.

   – A história do fantasma de capa de chuva… – repeti lentamente.

   Ele abriu os olhos e, virando o rosto para mim, franziu o cenho enquanto me encarava com uma expressão confusa. O escuro denso da madrugada, que a face interna da cortina guardava dentro do quarto, pintava seu olhar com uma complexa paleta de cinza. O jeito dele de me observar era tão intragável… Eu o encarei de volta e, enquanto sacudia a cabeça com um suspiro impaciente, senti roçarem nos meus olhos umas fatias magricelas de luz amarelo-incandescente que escapavam pela janela, arranhando a minha vista. E a noite da sua cidade era tão iluminada…

   – História do fantasma de capa de chuva…? – ele deixou escapar uma risadinha irônica: – E isso lá existe, um fantasma de capa de chuva?

   – Eu não sei se existe, mas… E daí? – estalei os lábios, incomodada. – Se é uma história de ficção, é óbvio que não precisa existir…

   – É verdade, é verdade… – ele bocejou, respondendo num tom desinteressado. – Mas, enfim, eu nunca ouvi falar de nada assim…

   – É, eu já meio que imaginava… – eu retruquei, agora sem mais saber se tinha vontade de falar sobre. – Mas você bem que podia conhecer…

   – E por que é que eu deveria conhecer? – ele perguntou balançando o rosto.

   – Sei lá, só porque eu gosto dessa história. – eu respondi sacudindo os ombros.

   Permanecemos assim, calados, um olhando para o outro, por meio minuto. Ele segurou seus olhos semiabertos, pesados de sono, só durante esses poucos segundos, enquanto ainda me observava do mesmo jeito irritante, desinteressado, como quando você escuta alguém falar sobre um monte de baboseiras. Todavia, logo depois que eu cansei de encará-lo, ele mesmo se virou para o lado dizendo algo como “Bom, depois você me conta desse fantasma aí então…”, e, sem mais paciência, num instante tornou a dormir despreocupadamente.

*

   Pela manhã as maritacas que moravam nas árvores ali por perto levantavam voo uma a uma, soltando uma estridente saraivada de pios. Não sei bem por que, eu ainda estava acordada, pensando no mesmo desgraçado fantasma de capa de chuva… Àquela hora, pouco depois do sol nascer, ele ainda dormia tranquilamente, envolto em sonhos que eu mesma não conhecia, largado no seu lado da cama…

   Deve ter sido só por volta das sete da manhã quando eu finalmente consegui dormi, e sei disso porque, pouco depois, ele mesmo acordou com o toque barulhento do alarme do seu celular. E, assim que ele se levantou da cama num sobressalto, arregaçando as cortinas do quarto cada uma para um lado em um gesto atabalhoado, mais uma vez eu acordava contra minha vontade… Mesmo dormente, assim que abri os olhos me lembrei do meu fantasma de capa de chuva.

   Por um longo minuto, ouvindo seu vai-e-vém para cima e para baixo dentro do quarto, pensei de longe sobre nosso diálogo sonolento de dentro da madrugada, e silenciosamente mastiguei a ideia de falar com ele sobre, de enfim contar a ele a tal da história. Mas pouco depois, meu corpo amoleceu sob a impaciência da insônia… Eu me encolhi, deitando de lado, e rapidamente me deixei esquecer do fantasma. “Deixa para lá, depois eu te conto então…”, foi o que pensei.

 


Há duas categorias de coisas que gosto de ter contato ao pensar em escrever: a primeira, ouvir músicas, e a segunda, ler textos dos meus autores favoritos. E, dentro dessas duas categorias, há ainda subcategorias, claro. Quanto à segunda, que é ler textos dos meus autores favoritos, é necessário primeiro pensar em quais são meus autores favoritos. Acho que quem conhece um porcento de mim vai saber que é fácil listar os três primeiros: Hakuri Murakami, Jack Kerouac e Natsume Soseki. Porém, tenho ainda um autor, que poucos têm contanto, e que por vezes chega até a roubar o primeiro lugar: Ryuunosuke Akutagawa. Não é à toa que, se eu pudesse ter um filho com nome japonês, a criança ia ter a desgraçada sina de se chamar Ryuunosuke… Para quem não conhece este autor, é interessante saber ao menos um pouco da sua história: Akutagawa é tido hoje como um dos pais da literatura japonesa, e foi um escritor de contos que abordavam especialmente a essência trágica da natureza humana. Dentre os trabalhos famosos desse escritor, um conto chamado “Yabu no Naka”, traduzido como “Dentro de um Bosque”, deu origem ao grande filme de Akira Kurosawa, Rashōmon; todavia, o conto de Akutagawa que mais me encanta é um chamado “Rodas Dentadas”. Rodas Dentadas, escrito no ano de sua morte, retrata um pouco do declínio mental de Akutagawa, e esse mesmo foi o conto que me trouxe, bem sem querer, o texto que posto aqui hoje; abaixo, o meu trecho predileto de “Rodas Dentadas”…


“Deixando a área residencial de veraneio nos confins da Linha Tokaido com apenas uma mala, eu fazia o táxi correr até uma estação ferroviária dessa linha. Pretendia comparecer à cerimônia de casamento de um conhecido. Quase o tempo todo, só se viam pinheiros frondosos em ambos os lados da estrada. Era improvável que pudesse chegar a tempo para o próximo trem com destino a Tóquio. Compartilhava o táxi comigo um dono de barbearia, gorducho feito jujuba, de barba rala no queixo. Preocupado como eu estava com o horário, o diálogo entre nós era esporádico.
   – Sabe de uma coisa estranha? Dizem que se vê fantasma na mansão do Senhor X, mesmo de dia.
   – Mesmo de dia, é?
   Eu observava um morro distante coberto de pinheiros, sob o sol poente de inverno, e participava distraído da conversa.
   – Se bem que não em dias claros. Dizem que ele aparece mais nos dias chuvosos.
   – Para se molhar, quem sabe.
   – Brincadeira sua… Mas dizem que é um fantasma com capa de chuva.
   O táxi encostou buzinando, e eu me despedi dele para entrar na estação. Como receava, o trem para Tóquio já deixara a plataforma dois ou três minutos antes. No saguão de espera, um homem, de capa de chuva, observava distraído o lado de fora. Me lembrou o que acabara de ouvir, sobre o fantasma, e sorri contrafeito.”

(Trecho do conto “Rodas Dentadas”, de Ryuunosuke Akutagawa)